segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

FOLIA VIGIADA - PARTE 2

Assim como a excursão do Salgueiro ao exterior, enredo da Unidos da Tijuca e Festa na Mangueira foram Monitoradas pelo Regime Civil-Militar




            Um enredo contestador, que cutucava com vara curta a dominação cultural e econômica norte-americana, bem ao estilo que se desejava em tempos de abertura política após anos de intensa vigilância e perseguição a militantes contrários ao regime civil-militar. Com samba no pé e um tema fabuloso na cabeça, a Unidos da Tijuca, escola que acabara de ascender ao grupo de elite do Carnaval de 1981, foi para a Avenida com o enredo “Macobeba: o que Dá pra Rir, Dá pra Chorar”, inspirado no livro “Manuscrito Holandês ou A Peleja do Caboclo Mitavaí contra o Monstro Macobeba”, uma alegoria literária de Manoel Cavalcanti Proença. E a mão da vigilância institucionalizada novamente pesou sobre uma escola de samba carioca, a exemplo do que já havia ocorrido em outras ocasiões, como a excursão de 1975, relatada na primeira matéria desta série.
            O documento confidencial foi gerado pelo Ministério da Aeronáutica com data de 23 de fevereiro de 1981, ou seja, faltando menos de uma semana para o Carnaval. Segundo o relatório,
“Foi constatada a atuação de comunistas junto à escola de samba Unidos da Tijuca com o propósito de que o enredo veiculasse uma mensagem política, dentro de sua linha ideológica”.
O texto do documento cita o nome Taiguara Chalar da Silva, ou simplesmente Taiguara, cantor que se tornou símbolo de resistência contra a ditadura ao se tornar um dos artistas mais censurados pelo regime, com canções engajadas como Hoje (Sorte / Eu não queria a juventude assim perdida / Eu não queria andar morrendo pela vida...). Nascido em Montevidéu, integrou a ala de compositores do Salgueiro, seguindo mais tarde para a Unidos da Tijuca. Chegou ainda a desfilar na Mocidade Independente de Padre Miguel no início da década de 1990.



Taiguara: cantor e compositor foi perseguido durante o regime militar

É importante notar que mesmo depois do processo de abertura política, que se deu de forma lenta e gradual, a vigilância era praticada de forma institucionalizada. O texto do documento não deixa dúvidas quanto à forma com que integrantes da Unidos da Tijuca passaram a ser monitorados. “TAIGUARA CHALAR DA SILVA, em contatos com membros da ala prestista do PCB, comentou ser a primeira vez que uma escola irá às ruas com um samba de protesto”, descreve o relatório. Além de Taiguara, são citados como entusiastas da escolha do enredo o então deputado estadual pelo PMDB Raymundo Theodoro Carvalho de Oliveira, Laura Fraguito Esteves de Oliveira (esposa de Raymundo e membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8). Também fazem parte da lista da repressão o casal Carlos Alberto Muniz e Maria Ângela Carvalho de Oliveira.
            Depois de uma análise da sinopse do enredo, o documento expõe que:

“está caracterizado o uso da mitopoética folclórica proveniente de intelectuais comunistas como forma de infiltração ideológica através dos enredos das escolas de samba, o que caracteriza a procura de novos espaços de atuação e veiculação de mensagens”.

Responsável pela parte visual do desfile, o carnavalesco Renato Lage (atualmente no comando artístico da Acadêmicos do Grande Rio), afirmou durante depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em 2016, que não tinha qualquer ciência de que o enredo estava sendo observado pelo governo militar. “A proposta do enredo veio da direção, especialmente do diretor da escola, Paulo César Cardoso. Eu fui tocando o trabalho no barracão e a gente ouvia falar alguma coisa, mas nada chegou a atrapalhar diretamente a produção do desfile”, explicou.
            O documento produzido pelos militares também demonstrava uma outra preocupação:

“Aproveitamento de acontecimento nacional de grande repercussão no exterior, como o Carnaval, e a penetração da imagem da TV capaz de atingir um número imenso de pessoas – com capacidade ampliada se houver explicação no sentido do enredo, como, aliás, tem havido nos carnavais anteriores”.
Ou seja, para órgãos do governo, a transmissão e a difusão do enredo em reportagens nos veículos de comunicação da época era um motivo a mais de atenção.
          Um dos pontos centrais no enredo, destacado também no samba cantado pela Unidos da Tijuca, dizia: “Macobeba maldito, que devora e mata o mito, rádio, jornal e TV”. Para os militares, esse trecho “enseja que a ação do monstro (Macobeba) esteja ligado à censura (devora a torre de rádio, jornal e TV), e vinculada ao exílio de pessoas (Mitavaí toma o caminho do mar), que, entretanto, retornariam...”. E continua: “Dissimuladamente, apregoa o conceito de ‘unidade’ (palavra de ordem do PCB – Partido Comunista Brasileiro) para incitar a luta contra as multinacionais através da expressão “no dia em que o povo todo se der as mãos, neste dia o monstro Macobeba morrerá”.
            O documento tem como anexo reportagem de página inteira veiculada pelo Jornal “O Dia”, datada de 18 de fevereiro de 1981. Com o título “Unidos da Tijuca Abre Críticas contra as Multinacionais”, a sequência a ser apresentada no desfile é dissecada para os leitores, com uma explicação do diretor Paulo César Cardoso: “O nosso enredo é simplesmente uma crítica de advertência, sem ser um enredo pessimista ou de oposição a quem quer que seja”, esclareceu. Incorporada com o espírito do herói Mitavaí, a Unidos da Tijuca abriu o desfile das grandes escolas no Carnaval de 1981 entre percalços, contratempos, aplausos e consagrações.

O Desfile e a Peleja
       Às 21 horas de um domingo de Carnaval marcado pela desorganização da Riotur (empresa de turismo do Rio de Janeiro, então responsável pela organização dos desfiles e vendas dos ingressos), a Unidos da Tijuca entrou na Sapucaí com duas horas de atraso. Mas valeu a pena a espera. O público foi brindado com uma escola recém-chegada ao grupo de elite do Carnaval, mas com apresentação digna de uma agremiação de ponta. O enredo, que meteu tanto medo no governo brasileiro, foi um dos destaques do desfile da amarelo e ouro do morro do Borel, zona Norte do Rio de Janeiro. A imprensa, já respirando os ares da abertura, adorou.




Uma das representações do monstro Macobeba foi como um polvo cujos olhos eram dois monitores de TV, numa crítica à dominação da mídia pelas multinacionais

“O nacionalismo também desfilou num enredo politicamente atualizado. A escola Unidos da Tijuca misturou folclore e economia numa fábula de entendimento instantâneo: o caboclo Mitavaí contra o mostro multinacional Macobeba. São agora personagens insubstituíveis na surrada economia brasileira”, escreveu Wilson Figueiredo, articulista de política do Jornal do Brasil na edição de 08 de março de 1981. 
           Tão impressionante quanto o discurso nacionalista do enredo foi a plástica elaborada pelo jovem Renato Lage, artista que trabalhava no departamento de arte da TV Educativa e que começou a carreira em escolas de samba como assistente de Fernando Pamplona, no Salgueiro, em 1977. Lage utilizou copinhos plástico para decorar o monstro Macobeba, que tinha ainda dois monitores de TV ligados representando a dominação midiática sobre a massa. A criatividade foi laureada com o prêmio “Estandarte de Ouro” concedido pelo jornal O Globo como o melhor o melhor enredo do Carnaval de 1981.


Outra representação do monstro Macobeba: copinhos de plástico revestiram a estrutura da alegoria, recurso que foi extremamente elogiado pela crítica carnavalesca

A Unidos da Tijuca alcançou um honroso oitavo lugar, mas pelo menos na pista de desfiles, o herói Mitavaí, arquétipo de todo brasileiro, venceu Macobeba – que (por que não?) poderia ser representado pela própria vigilância dos governo - em uma peleja épica e inesquecível. Por fim, a arte venceu a força de um regime já em adiantado estado de decomposição.   


Dia das Mães em Mangueira
Os arquivos que revelaram a vigilância do regime civil-militar também trouxeram à tona informações sobre uma festa em comemoração ao dia das mães, realizado na quadra da Estação Primeira de Mangueira, em 10 de maio de 1981. A celebração teve entre os participantes o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), sociedade civil independente que passou a atuar em 1978. Na ocasião, segundo o relatório, seriam homenageadas as mães dos “mortos e desaparecidos”.
O documento adverte que:
“Durante aquelas comemorações, Cirene Moroni Barroso, mãe de uma moça que desapareceu no Araguaia, deverá falar narrando o drama da filha, a fim de causar impacto ao público presente”.
Há poucas ou nenhuma informação relevante sobre a realização do evento. Mas é importante registrar que o relatório trazia uma recomendação expressa: “para difusão externa, este documento deverá ter seu texto descaracterizado”.


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Ao final do documento, a recomendação para que a mensagem contida no relatório fosse descaracterizada

Vale lembrar ainda que o informe, datado de 8 de maio, foi produzido dias depois de uma tragédia, símbolo da agonia do regime que acabaria em 1985: o episódio conhecido como “Bomba do Riocentro”, um atentado terrorista promovido pelo serviço de espionagem do Exército em 30 de abril de 1981.
Na ocasião, 20 mil pessoas estavam reunidas no Centro de Convenções localizado na zona oeste da cidade para um show em celebração ao dia do trabalho e em protesto contra o regime. O ato reuniu artistas como Chico Buarque e Luiz Gonzaga. 
  Foram explodidas duas bombas no estacionamento do RioCentro, ocasionando a morte de dois agentes infiltrados pelo Exército. O episódio chamou a atenção para atividades terroristas praticadas pelo próprio regime, cuja imagem começou a desabar frente à opinião pública.
 Tanto no caso da Unidos da Tijuca, quanto no caso do evento do dia das mães em Mangueira não tiveram qualquer interferência prática nos propósitos das respectivas agremiações. Mas é importante conhecer como o regime continuou a monitorar os passos de atividades culturais, mesmo após iniciado o processo de abertura política. Passadas cerca de quatro décadas, alguns fantasmas do regime que não poupou brasileiros da espionagem, da tortura e da corrupção ainda estão aí para nos lembrar que Macobeba foi ferido de morte, tomou o caminho do mar, jurando um dia voltar. O monstro não morreu. Nessa peleja, somo todos mitavaís. 
E Macobeba continua entre nós. 

Confira o link do vídeo do desfile da Unidos da Tijuca em 1981:
  

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

FOLIA VIGIADA

Excursão de Sambistas pela Europa foi monitorada passo a passo por órgãos do governo militar




       O que seria uma viagem triunfal ao velho continente para mostrar a exuberância do carnaval carioca transformou-se em um enredo desastroso escondido nas frestas da história das escolas de samba. Contratados para uma série de shows na badalada temporada de verão na Europa, cerca de 150 sambistas viraram protagonistas de um imbróglio diplomático, sob intensa vigilância da Divisão de Segurança de Informações (DSI) do Ministério das Relações Exteriores.
    O ano era 1975 e o Salgueiro ostentava o título de bicampeão do Carnaval carioca. Após o sucesso dos desfiles comandados por Joãosinho Trinta (que havia deixado o Salgueiro logo após o carnaval daquele ano, indo para a Beija-Flor de Nilópolis), a direção da escola vermelha e branca recebeu um convite dos empresários franceses André Georges Crispin, Gilbert Caucanas e Gérard Stuffel - este último conhecido produtor de grandes espetáculos em Paris. Mas uma das atividades programadas deixou o alto comando militar brasileiro em alerta: a apresentação de um show de samba durante a festa do jornal L’Humanité (evento anual, realizado até hoje, chamado Fête de L’Humanité), descrito no relatório do DSI como o “porta-voz do Partido Comunista Francês”.
O governo brasileiro, então sob o comando do general Ernesto Geisel, passou a monitorar minuciosamente a excursão. Cada passo dos sambistas na Europa foi documentado em um relatório de 29 páginas. 
“Os órgãos do governo brasileiro tinham sua Divisão de Serviço de Informação (DSI). Como se tratava de uma viagem para fora do país, o monitoramento ficou a cargo do DSI do Ministério das Relações Exteriores. Esses relatos deram origem a um único documento, produzido pela Agência Central, órgão ligado ao Serviço Nacional de Inteligência, o SNI, então chefiado pelo general Newton Cruz”, explica a historiadora Carla Lopes, profissional de referência do projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. 
  Dos anos de 1980 à década de 2000, somente pesquisadores acadêmicos – estrangeiros, em sua maioria - tinham acesso aos documentos. Desde 2011, com a Lei de Acesso à Informação, os relatórios estão disponíveis a todos os cidadãos na sede do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. E mostram como o regime interveio diretamente na viagem dos sambistas por países como Espanha, França e Suíça.


Carla Lopes, pesquisadora do Arquivo Nacional apresenta o documento de 29 páginas

A primeira série de relatos, datada de 10 de julho de 1975, diz que “a embaixada do Brasil em Paris está instruída a procurar dissuadir os sambistas da (sic) “Salgueiro” de participarem de festas organizadas por comunistas franceses”. O possível show a ser realizado no evento causou diversos contratempos aos integrantes da excursão - 40% do total de participantes eram salgueirenses, que se somavam aos 60% de integrantes de outras agremiações, segundo o ex-diretor da escola Pedro Nobre, no livro Uma Vida Chamada Salgueiro. Muitos deles não tinham a menor ideia de que estavam sendo vigiados pelo regime militar. O que souberam, já em solo europeu, era que a realidade seria bem diferente do sonho vendido pelos empresários franceses quando foram contratados para a turnê.     

Padecendo no paraíso: exploração, galhofas e maus tratos

No dia 30 de julho, a coluna do jornalista Zózimo Barroso do Amaral, no Jornal do Brasil, noticiava com ares de galhofa a excursão, já antevendo o fracasso da viagem iniciada dias antes. 
“Os sambistas foram abandonados na Espanha, segundo país de sua “tournée”, pelo empresário francês, que com o dinheiro no bolso, houve por bem escapar para dias melhores no sol da “côte” (referindo-se à região à beira do mar Mediterrâneo, denominada Côte D’Azur - Costa Azul). O abandono foi tão repentino, que a viagem para a Espanha acabou em piada, indo a bateria para Madri e os passistas para Barcelona, todos perdidos na rua, vestidos de Maria Antonieta e Luís XV, para perplexidade dos espanhóis”, escreveu o jornalista
  Tudo, claro, era um enorme exagero por parte do colunista. Mas as condições em que se encontravam os sambistas, de fato, não tinham nada de engraçadas.  No dia 31 de julho, a mesma coluna já indicava, em nota intitulada “Travessuras do Salgueiro”, que a excursão poderia render uma dor de cabeça ainda maior para a agremiação, classificando a turnê como “folhetinesca”. 
“O mais novo personagem a entrar em cena é o Partido Comunista Francês, que segundo se informa, foi na verdade quem contratou a escola de samba para animar em Cannes a festa do seu aniversário. O passeio e as apresentações na Espanha seriam apenas uma avant-première do carnaval na Côte (Costa Azul), aproveitando os sambistas as passagens já pagas para faturar mais algum”. Enquanto isso, na surdina, o governo brasileiro continuava a acompanhar cada passo da excursão.
   Os relatórios produzidos pelo DSI detalhavam o deslocamento da comitiva pela Europa, relatando as precárias condições a que os sambistas foram submetidos.  O documento produzido com data de 12 de agosto apontava as primeiras repercussões nos veículos de comunicação do Brasil.
   “O noticiário surgido na imprensa brasileira teve origem nas dificuldades que se apresentaram no início da excursão, particularmente após a saída de Madri para Barcelona, trecho percorrido em ônibus, sob condições de desconforto. Foi preciso utilizar os assentos de passageiros para o transporte das malas, uma vez que o depósito de carga se revelou insuficiente". 
Ou seja, a viagem pelo velho continente não tinha qualquer glamour. Muito pelo contrário. A imprensa brasileira seguia debochando da situação.
     O colunista Carlos Eduardo Novaes dedicou uma coluna inteira sobre a excursão na edição de 04 de agosto de 1975 no Jornal do Brasil. O texto, em alguns momentos, resvalava para a galhofa. Segundo Novaes, em uma cidade do interior da França, os sambistas tiveram que se apresentar em ruas movimentadas, com muitos cruzamentos. A “apoteose” teria se dado quando os brasileiros encontraram pelo caminho uma passeata do Partido Comunista Francês. 
   “Houve até um princípio de violência, porque os comunistas confundiram a escola de samba com um grupo de hippies interessados em solapar suas reivindicações”. O colunista completou dizendo que depois de um certo tempo, foram encontrados dois manifestantes sambando com o Salgueiro, enquanto que “a porta-bandeira, desorientada, seguia à frente da passeata comunista”.    
Piadas à parte, a excursão continuou, mas com ares de iminente desastre. Os passos da agremiação pela Espanha e França foram descritos minuciosamente no relatório do governo militar. Uma das páginas registrou a denúncia feita pela diretora de relações públicas do Salgueiro, Elisabeth Nunes, que não chegou a embarcar com o grupo. Preocupada com a situação dos integrantes – entre eles a irmã Rosa Nunes, que fazia a primeira viagem internacional, Elisabeth formalizou um pedido aos consulados do Brasil em Paris e em Marselha para que fossem tomadas as devidas providências para o retorno ao país.
Elisabeth Nunes: ocupava o cargo de relações públicas do Salgueiro na época da excursão

“As notícias que eu recebi por essa carta me deixaram muito preocupada. Eu fui ao Consulado da França no Rio de Janeiro para tentar resolver a questão. Levei o caso também para a imprensa, dei muitas entrevistas, estava apavorada. Queria chamar a atenção para o descaso com os viajantes. Jamais imaginei que o governo brasileiro estava vigiando toda a viagem por causa de contatos com comunistas. Só estou sabendo disso agora”, surpreendeu-se. Outro que não sabia da vigilância pelos órgãos do regime foi o passista Jerônimo Patrocínio. “Fui convidado pelos shows que fazia aqui no Rio de Janeiro pela Portela. Não tinha ouvido falar nada sobre esses relatórios. Para mim, a excursão foi mais tranquila, não passei por tantos problemas que os outros viveram. Participei de outras apresentações, mas voltei com todo o grupo”, recorda.    
    Um dos organizadores da viagem, o empresário Maurício Mattos, então vice-presidente da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, esteve presente em parte da excursão e foi convidado a prestar depoimento sobre o caso na embaixada brasileira em Paris. Durante o interrogatório no Consulado-Geral na capital francesa, Mattos afirmou que a participação remunerada do conjunto artístico na festividade do jornal L’Humanité não caracterizaria nenhuma “adesão ideológica” aos comunistas. Em entrevista para esta reportagem, Mattos ratificou que o objetivo da excursão era estritamente comercial. “Não havia qualquer ligação política. Meu papel como um dos organizadores da viagem era cumprir com a agenda de compromissos, mas tivemos muitas dificuldades”, reconhece.


Jornal L'Humanité: em atividade até hoje, é uma das vozes do Partido Comunista Francês

Calote na Costa Azul   

        A excursão à Europa foi chefiada conjuntamente pelo coronel reformado do Exército, Mauro de Almeida (diretor do Império Serrano), e pelo então presidente da agremiação, Osmar Valença. Em diversas oportunidades do relato, Osmar é apontado como não tendo “nenhum peso ou condições de mando”, indicando a falta de espírito de liderança junto à comitiva. No dia 10 de agosto, o cônsul-geral do Brasil na cidade francesa de Marselha assistiu ao show dos sambistas em um município próximo, Juan-les-Pins, localizado na exuberante Costa Azul da França. De acordo com o relatório do DSI, a apresentação “deixou muito a desejar por total falta de organização, pela evidente ausência de chefia e coordenação”.
Já o informativo de 12 de agosto se refere textualmente à falta de pagamento. Integrantes da agremiação encontravam-se num dos mais belos e seletos lugares turísticos do mundo, conhecido roteiro de milionários. Se o cenário era paradisíaco, as condições da viagem eram um notório inferno. Excesso de apresentações, falta de pagamento, má alimentação e longos deslocamentos tornaram a excursão um tormento para os sambistas. Elisabeth Nunes lembra que a irmã, Rosa Nunes, denunciou de forma contundente a escassez de comida. “A carne do almoço era cortada com lâmina de barbear para poder ser dividida entre os sambistas”, revela. Pedro Nobre, autor no referido livro “Uma Vida Chamada Salgueiro”, endossa: “Ás vezes (os artistas) ficavam sem ter o que comer”. 
As acomodações também eram precárias. Elisabeth lembra que os excursionistas chegaram a se amontoar em abrigos extremamente desconfortáveis, isso quando não passavam noites e dias viajando em trens e ônibus lotados.


Trecho do relatório em 12 de agosto descreve os apuros dos excursionistas na Europa

A essa altura, três participantes da comitiva retornaram ao Brasil, alegando estarem esgotados com a intensa agenda de shows. Maurício Mattos ponderou que alguns voltaram por não terem se adaptado à comida e às acomodações. “Uma das que retornaram ao Brasil antes do previsto foi a destaque Pildes Pereira, ex-presidente da Vila Isabel. Ela não se adaptou à alimentação na Europa”, recorda. 
   Entretanto, a preocupação maior dos relatos continuava sendo a possível participação da escola de samba na festa do jornal L’Humanité, vinculado ao Partido Comunista Francês. Ou seja, para o governo brasileiro o abandono dos excursionistas era o de menos. O foco principal era evitar a qualquer custo que os artistas não participassem do evento, marcado para dali a um mês, entre os dias 13 e 14 de setembro de 1975.


Imagem extraída de um vídeo com cenas de apresentações artísticas na Festa do Jornal L'humanité em 1974, ano anterior ao da excursão dos sambistas pela Europa
   
    Ouvido no consulado brasileiro em Marselha, o empresário contratante André Crispin defendeu-se atacando o grupo. Em depoimento, o contratante confessou que não estava fazendo os pagamentos devidos, mas isso se devia a problemas de disciplina que estavam lhe causando sérios prejuízos. Crispin relatou que havia sido obrigado a fazer ressarcimentos devido a “roubos e dilapidações” praticados pelo grupo. O empresário também se queixou dos constantes atrasos nas apresentações, que teriam causado devolução de ingressos e irritação por parte do público em algumas ocasiões. O número de excursionistas diminuía a cada dia. A solução encontrada para completar o elenco gerou um problema ainda maior. 

Exilados políticos: “A semente da discórdia já havia sido lançada”

         Em novo relatório, datado de 26 de agosto, o coronel Mauro Almeida revelou que os empresários Caucanas e Crispin contrataram, em Paris, outros 45 integrantes que não participavam da formação original do grupo. Eram 37 brasileiros, três argentinos, dois franceses, um chileno, um peruano e um português. Esses novos personagens se juntaram aos demais para apresentações na Suíça. O enxerto dos componentes seria feito para contornar a exigência quanto ao número mínimo de 150 integrantes, de acordo com o contrato firmado com os empresários franceses. Mas a presença deles acarretaria o agravamento da crise com o governo brasileiro.
     O relatório do DSI aponta que diversos problemas de disciplina começaram a surgir desde a chegada do novo grupo à Suíça, depois das apresentações na França e na Espanha. “Três dos recém-incorporados, Tereza Cristina Collier, Mônica Martins Rabelo e Ronaldo Fonseca da Rocha, provavelmente subversivos brasileiros radicados em Paris, começaram a promover agitação, tentando provocar incidentes e agredindo verbalmente o coronel” (Mauro de Almeida). 
   Tereza Cristina Collier, que hoje mora em Recife depois de viver na França por quase 40 anos devido à perseguição política, explica a tal agressão. “Eu falei com ele num tom mais alto. Estávamos sem pagamento pela apresentação que havíamos acabado de fazer em Genebra, na Suíça. Assim que acabou o show, tínhamos que voltar imediatamente de ônibus à França para novas apresentações”, diz Tereza.


  Sobre a integração de exilados políticos na excursão: "a semente da discórdia já havia sido plantada" 

O documento apresenta a ficha de cada um dos 45 integrantes que se juntaram à excursão na Europa. Nomes de exilados políticos, como o de Tereza Collier, classificada como militante e foragida do Brasil desde 1970, estavam na lista de “subversivos” do governo brasileiro. Outro nome em destaque que se juntou aos excursionistas foi o de Ronaldo Fonseca Rocha, que segundo levantamento feito pelos militares, “vivia no Chile (...) e foi detido em fevereiro de 1970 por subversão”.
Tereza Collier disse a esta reportagem ter se integrado à excursão por ser estudante de cinema, sendo convidada pelo empresário Crispin. Collier explica que chegou a cogitar ir à imprensa estrangeira denunciar que a excursão estava sendo monitorada. “Eles (referindo-se aos militares) demonizaram a nossa participação. Eu tinha ouvido falar no Salgueiro na França, como uma escola de samba que vinha se destacando no carnaval brasileiro. Acabei indo fazer as apresentações para ganhar um dinheiro. Mas eu e outros amigos fomos excluídos do grupo. Fizemos apenas um show”, lembra. 
     De acordo com o relatório, os três novos integrantes foram desligados do grupo pelo Coronel Almeida. Com palavras de cunho dramático, o documento de 26 de agosto diz que apesar da atitude de Almeida, “a semente da discórdia já havia sido lançada”.  A tal “semente da discórdia” era uma referência ao clima tenso que havia se instaurado na viagem e aos exilados políticos que se integraram ao grupo. 
    O relatório aponta que a situação só foi apaziguada quando o cônsul do Brasil em Marselha se dirigiu aos excursionistas e disse que ele estava ali para ajudá-los, mas que em troca, apelaria para o bom comportamento. Ao final da conversa, o diplomata foi cercado pelos excursionistas, expondo o descontentamento com as péssimas condições a que forma submetidos na viagem. Ao final, foi recomendado ao presidente do Salgueiro Osmar Valença e ao coronel Mauro de Almeida “a maior descrição possível sobre esses assuntos, em particular com a imprensa”. Estava preparado o terreno para o retorno ao Brasil.

O Amargo Regresso

   O grupo retornou ao Rio no dia 02 de setembro de 1975, em um voo comercial da Varig. O jornalista Antônio Lemos disse em entrevista aos veículos de comunicação, ainda no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, que a volta foi antecipada pelo governo brasileiro devido a “atos de indisciplina”. Assim que botaram os pés no país, o diretor social da escola Adilson Santos (conhecido como Mão Negra), foi preso sob a acusação de uso de drogas e agressão à mulher, Eunice, que também participava da viagem. O presidente do Salgueiro, Osmar Valença, alegou que o uso de entorpecentes se restringiu a um dos membros da comitiva que se integrou ao grupo em Genebra, na Suíça. E tudo ficou por isso mesmo.   



Matéria publicada no Jornal do Brasil de 04 de setembro de 1975

     O fim melancólico da fracassada excursão foi um alívio, tanto para os sambistas, quanto para o Governo brasileiro, que evitou que um dos seus maiores produtos de visibilidade cultural, o samba, estivesse presente na festa de um veículo de comunicação ligado ao Partido Comunista Francês. Entretanto, a malfadada folia na Europa, rigidamente vigiada pelos órgãos de segurança no Brasil, não era sequer conhecida pela maioria dos artistas que participaram da excursão, mesmo depois de passados mais de 40 anos da viagem.     
  Se a cuíca não roncou, a mulata não sambou e o pandeiro não rodou na festa do jornal L’Humanité, ligado ao Partido Comunista Francês, o Salgueiro - que tem o vermelho e o branco nas cores da sua bandeira – esquentou as cabeças vestidas pelos quepes do governo militar. Uma história que só veio à tona graças à divulgação de documentos mantidos em sigilo há até bem pouco tempo. “Todo povo tem o direito de conhecer sua história. Quem lê esses arquivos não pode ficar insensível a tudo o que passamos no Brasil. Temos que aprender com o passado para não repetir os mesmos erros no futuro”, diz a pesquisadora Carla Lopes. Na passarela da história, ainda há inúmeros enredos e desenredos encobertos e que precisam vir à tona para que nunca mais desfilem. 
Outros relatórios ainda foram produzidos. Desta vez, as escolas monitoradas seriam a Unidos da Tijuca e Estação Primeira de Mangueira, já nos anos de 1980. Prova de que mesmo com o processo de abertura política, a sombra da vigilância da ditadura ainda pairava no país do Carnaval.    


Atualizações sobre os personagens citados nesta reportagem:

-  O empresário Gilbert Caucanas morreu em 1994.

- Não há informações precisas sobre o destino de André Crispin.

- Tereza Cristina Collier foi militante do grupo Ação Popular e viveu na França por quatro décadas, segundo matéria do jornal do Commercio, de 09 de dezembro de 2012.  (Veja em http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2012/12/09/reencontro-com-a-historia-66253.php)

- Mônica Martins Rabelo foi anistiada e recebeu reparação econômica de caráter indenizatório do Governo brasileiro em 2002.

- Ronaldo Fonseca da Rocha, segundo o relatório, é jornalista, mineiro, e viveu no Chile. Foi preso em fevereiro de 1970 acusado de “subversão”.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

‘STAMOS EM PLENO MAR – O NAVIO NEGREIRO SALGUEIRENSE DE 1957

No quarto carnaval apresentado após a fundação em 1953, os Acadêmicos do Salgueiro levaram para a avenida um dos desfiles mais marcantes da escola até então. Com o enredo “Navio Negreiro”, a escola mergulhou fundo na dramaticidade exposta às últimas consequências no poema de Castro Alves e foi à luta com um grito pela liberdade.

A concepção estética do desfile ficou a cargo do artesão da Casa da Moeda, Hildebrando Moura, artista que colaborou desde o primeiro carnaval salgueirense, com o enredo “Uma Romaria à Bahia”, de 1954. 

Nesse raro registro fotográfico, publicado na edição de 6 de março de 1957 do Jornal Última Hora, podemos observar um pouco do trabalho de Hildebrando Moura, com um navio negreiro ao fundo, trazendo à frente foliões vestidos como homens escravizados. 



O samba, de autoria de Djalma Sabiá e Amado Régis, foi inspirado pela intensidade dramática da travessia do Atlântico nos tumbeiros, encontrando total correspondência com o poema original de Castro Alves. A obra salgueirense trouxe versos densos como este:

“No porão da embarcação
Com a alma em farrapos
De tantos maus tratos
Vinham para a escravidão”. 


Clique e ouça:


quinta-feira, 9 de junho de 2016

VILA ISABEL: A “DIFERENTONA” DE 1967

Uma grande expectativa marcou o período pré-carnavalesco da Unidos de Vila Isabel de 1967. Sob a direção do contraventor Miro Garcia, o “Carnaval de Ilusões” da escola do bairro de Noel Rosa foi uma espécie de abre-alas de uma tendência que anos mais tarde iria dominar a Avenida pelas mãos e pela mente de Joãosinho Trinta: os enredos imaginários, calcado nas lembranças da infância.

A fantasia da bateria, por exemplo, veio integrada à ideia e vestiu-se de Soldadinho de Chumbo, toda trabalhada em formas geométricas, num belo trabalho visual desenvolvido pelo figurinista Poty.




Numa período marcado pela predominância de temas históricos, a Vila veio diferentona e agradou: alcançou o quarto lugar, cantando o samba de Martinho da Vila e Gemeu, pondo “os seres do seu reino encantado, desfilando para o povo deslumbrado, num carnaval de ilusões”.


A escola comemorou muito – e com razão – o grande feito de ter adentrado em triunfo no quase impenetrável reino das “quatro grandes”: Mangueira, Salgueiro, Império Serrano e Portela. Aliás, a águia alcançou apenas a sexta colocação, com “Tal Dia é o Batizado”. 

Aplausos à Vila, que anos mais tarde iria revisitar os temas infantis, com Max Lopes, com o enredo “Parece que Foi Ontem...”. Mas isso é papo para outro post. 






P.S: Agradecimentos especiais ao designer Victor Brito, que deu uma repaginada no visual do Blog. Muito obrigado, nobre salgueirense. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

É DO(A)S CARECAS QUE ELA(E)S GOSTAM MAIS

A cabeça está nua, o rosto à mostra, o sorriso totalmente devassado. A falta de cabelo pode dar até dor de cabeça, mas pode também proporcionar um ar andrógino e ao mesmo tempo divino. Por isso, vez por outra, carecas ganham na Avenida uma roupagem artística e performática, garantindo aplausos e, em alguns casos, um sucesso arrebatador.



Vamos voltar a 1976, ano em que a Mocidade Independente de Padre Miguel apresentou o enredo “Mãe Menininha do Gantois”. Antes de cunhar a inesquecível imagem da bateria da Mocidade Independente de cabeça raspada, houve muita polêmica. O pedido para que os ritmistas desfilassem sem os cabelos partiu da própria homenageada, Mãe Menininha. E foi feito diretamente a representantes da verde e branca da Padre Miguel.

A jornalista Bárbara Pereira, autora do livro Estrela que me Faz Sonhar, explica: “os integrantes da bateria deveriam estar vestidos como ogãs dos terreiros, e, portanto, suas cabeças seriam raspadas e os cabelos, entregues para a própria Mãe Menininha, em Salvador (...). As cabeças foram raspadas, a contragosto dos ritmistas, mas o incumbido de levar os cabelos até a Bahia, Jorginho Bracinho, sofreu um acidente durante a viagem”.


Em 2001, com o enredo “Paz e Harmonia, Mocidade é Alegria”, Renato Lage decidiu revisitar Arlindo e “encarecar” de novo a bateria da escola, desta vez homenageando o líder pacifista hindu Mahatma Ghandi. Houve resistência, mas os ritmistas acabaram cedendo.

Se para o lado da rapaziada foi dureza pelar a cabeça, imagina para uma mulher. Mas foi aí que a magia se fez. Pinah, a mineira de Muriaé de 1,80m de altura e porte de totem africano, tornou-se o símbolo de beleza e personalidade ao encarar sem medo a avenida com a cabeça ornada apenas de pequenos adereços. Uma jornada que começou ainda em 1976, quando foi “descoberta” como modelo. “Em um dos seus primeiros trabalhos, posou com estamparias africanas para a artista plástica Iracy Carise, e pouco depois conheceu Luiz Carlos Ribeiro, costureiro para concursos em clubes”, conta o jornalista Aydano André Motta, no livro Maravilhosa e Soberana, sobre histórias e personalidades da Beija-Flor de Nilópolis.



Atualmente, a herdeira do espólio da beleza calva no imaginário carnavalesco é Jéssica Mara, modelo de 1,83m de altura. As performances da bela componente sobre os carros da Caprichosos de Pilares, e posteriormente, da Estácio de Sá, causaram um impacto da magnitude de um terremoto na Sapucaí. Sucesso absoluto.  



Mas impactante mesmo foi a imagem da porta-bandeira Squel Jorgea. Num ano em que Maria Bethânia foi a grande estrela do enredo campeão mangueirense, a jovem fez história ao mostrar-se com uma careca proeminente, lembrando as filhas de santo que raspam a cabeça em cerimônias religiosas. Tratava-se, na verdade, de um truque muito bem feito de maquiagem e pintura, utilizando uma touca que escondia a vasta cabeleira. Arte pura surgida da cabeça do marido e carnavalesco Leandro Vieira, que enxergou como seria notável apresentar uma porta-bandeira careca. E assim o foi.



Recurso que também havia sido utilizado por Joãosinho Trinta em 1996, no enredo “Aquarela do Brasil, Ano 2000”. Naquele ano, o carnavalesco maranhense pediu que fosse raspada (mesmo!) a cabeça da segunda porta-bandeira Simone, que representaria uma filha de santo. Houve burburinho, e a imagem, mesmo não tendo tanta força como a que a Estação Primeira cunhou neste ano de 2016, ficou eternizada.



Esses exemplos mostram que no carnaval soluções ousadas e radicais, quando bem realizadas, são sucesso garantido na Avenida. Para o bem do espetáculo, na hora do aperto, os diferentes são os maiorais. Afinal, é deles, dos destemidos, que o povo gosta mais.





sexta-feira, 3 de junho de 2016

MERCEDES BAPTISTA - A RAINHA DO LUNDU DE 1966

Belo registro: Mercedes Baptista e seu balé folclórico executam uma coreografia baseada na dança do lundu para o enredo "Amores Célebres do Brasil", de autoria de Clóvis Bornay, no desfile do Salgueiro de 1966. Apesar de a escola ter ficado apenas com a quinta colocação, não faltou graça e sobrou raça!
Salve, Mercedes Baptista!



 (Imagem: Revista O Cruzeiro, de 19 de março de 1966)

quinta-feira, 2 de junho de 2016

E O "OMMENGANG", QUEM DIRIA, VEIO PARAR NA SAPUCAÍ!

Ommengang significa na antiga língua flamenga, “passeio”, "desfile". É uma mistura de antigas tradições religiosas com cerimônias de caráter civil, que ocorre anualmente na Bélgica desde 1539. 


(Imagem disponível no site: visitflanders.com)

Em 1615, a cidade de Bruxelas, capital belga, viu um dos mais belos espetáculos desses “passeios”, em honra a arquiduquesa Isabella e ao marido, Albert. Mas o que isso tem a ver com o carnaval? Tudo! No livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, Felipe Ferreira, professor do Programa de Pós-Gradução em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), destaca o “fabuloso desfile de alegorias ocorrido no ano de 1615, em honra de Isabella, esposa do arquiduque da Bélgica (...). O esplendor dos carros marca o poder dos governantes e dá-nos uma ideia das paradas realizadas por toda a Europa nos dias de carnaval”.


 (Tela: The Ommenganck in Brussels on 31 May 1615; The Triumph of Archiduchesse Isabella. Victoria and Albert Museum, Londres). 


A tela do pintor flamengo Dennis Von Asloot mostra detalhes da bela festividade ocorrida naquele ano de 1615. Mas uma imagem específica nos chama a atenção. Entre diversos animais exóticos representados alegoricamente no desfile, está um unicórnio sobre o qual se apresenta uma criança fantasiada.



A referência a essa imagem ganhou a Marquês de Sapucaí no desfile do Salgueiro de 1990, no enredo “Sou Amigo do Rei”, que tratava da influência medieval no imaginário nordestino. A carnavalesca Rosa Magalhães, reconhecida por levar à avenida reproduções inspiradas em diversas manifestações artísticas, recuperou a obra de Dennis Von Asloot na abertura da apresentação salgueirense. Com todo esplendor, fez seu Ommengang na Avenida!  



E foi assim que uma referência visual do século 17 veio ganhar uma bela e inesquecível reprodução alegórica “neste reino de Xangô”. A arte que tumbou lá na Bélgica, tumbou cá no Sambódromo.